Ao sair de casa, na última terça-feira
(26), para visitar uma filha no centro da cidade sertaneja de Floresta, a
439 quilômetros de Recife, Manoel Afonso dos Santos, de 82 anos,
delegou uma triste tarefa à mulher, Maria Fátima Alves Laurentino, de
46: deixar com fome o cavalo Canário por um dia, para que não faltasse
ração aos bois Sereno e Mineiro e ao bezerro Boa Vista. Morando em uma
casa de taipa, sem direito a água nem colheita, ele adotou esses rodízio
para administrar os seis hectares do sítio Riacho do Ouro, onde, ao
longo dos últimos doze meses, viu sumir o patrimônio de uma vida, na
pior seca em meio século. Assistiu à morte de 31 bichos e vendeu cinco
outros, “a preço de banana” para garantir o sustento dos que sobreviveram.
Seca: levantamento aponta foco em ações remediadoras
Em Serra Talhada, também no sertão, a
418 quilômetros de Recife, José Lopes da Costa, de 78 anos, vive a mesma
dor: já perdeu 20 cabeças de gado. Há um mês, vendeu uma “junta de boi de trabalho” por R$ 5 mil para garantir alimentação dos que sobraram. Era bicho “danado de bom”,
que Zeca do Jazigo, como o agricultor é mais conhecido, não pretendia
comercializar por dinheiro algum. Em São Caetano, no agreste, José
Albertino da Silva, de 75 anos, já não tem “mais nenhum bichinho”. Nem
tentou plantar melancia, milho, feijão e mandioca porque “a terra não molhou” no seu sítio, chamado ironicamente Poço D´Água.
Além de verem os rebanhos minguarem
Afonso, José e Albertino são a prova de que a indústria da seca não
acabou: eles vêm gastando os últimos trocados na compra de água, já que a
frota oficial não atende à demanda das populações da caatinga.
— Água virou ouro, e tem muita gente enricando com ele — reclamaram Maria Angelina Cordeiro, de 71 anos, e sua filha, Josefa Márcia, de 29.
Elas moram no Sítio Mocós, em Tacaimbó,
também no agreste, uma zona de transição entre a Zona da Mata e o
sertão. Beneficiária de aposentadoria rural, Maria pôde comprar água.
Este ano já gastou R$ 600 só com pagamento de carros-pipa. Contou que a
venda da água, transformada em artigo de luxo, virou um negócio tão
rentável, que há pessoas vendendo até automóveis para comprar
caminhões-tanque:
— Teve um aqui perto que vendeu um açude por R$ 3 mil — disse ela, referindo-se a Albino Jota Barros, que não foi localizado em casa pelo GLOBO.
Carro-pipa chega a custar R$ 180
O comprador do açude, segundo a
agricultora, secou a represa e vendeu a água a um preço muito alto para
os lavradores já descapitalizados com a estiagem. O problema, porém, é
mais abrangente: O GLOBO não esteve em uma só casa onde os moradores não
compraram água na atual seca. Os preços não são baixos: variam de R$
120 a R$ 180 cada carro-pipa. Na sede do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Tacaimbó, a 169 quilômetros de Recife, a maioria dos
lavradores levantou as mãos, quando pergunta se já tinha gasto dinheiro
com água este ano.
— Não comprei, mas não por falta de necessidade, mas por falta de dinheiro. Minha cisterna está seca — reclamou José Herculino de Macedo, de 66 anos.
Quem comprou reconhece a exploração.
Angelina contou que parentes seus, que moram na cidade com água
encanada, têm conta mensal de R$ 36 com uma família do mesmo tamanho da
sua. Ela não entende por que tem que pagar um preço tão exorbitante pelo
que é um direito. Em Pernambuco, há 1.476 carros-pipa em operação: 638
do Exército e 838 do governo estadual. Isso sem falar nos mobilizados
pelas prefeituras. Mas, segundo a população da caatinga, a oferta está
longe de atender à demanda. Assim quem quase mais nada têm a oferecer é
explorado. Gente como Adriano João da Silva, de 23 anos, residente em
São Caetano, vizinho a seu Albertino, que está vendendo o rebanho para
comprar água e comida para a família e os caprinos:
— O governo diz que vem todo mês uma
carrada, mas não chega. A gente compra a R$ 130 no caminhão, e nem boa a
água é, é salobra a danada. Até os bichos acham ruim — disse Adriano.
Para economizar, ele gasta três horas diárias no jumento para arranjar água barrenta nos açudes que ainda têm “um espelhinho” na caatinga. Precisa de 250 litros por dia para matar a sede das 40 cabras que restam.
Dez milhões afetados pela seca
Segundo a presidente do Sindicato de
Trabalhadores Rurais de Tacaimbó, Antônia dos Santos Nascimento, há 300
reclamações de que falta ajuda dos caminhões oficiais. Apesar disso, o
Ministério da Integração Nacional informou que a Operação Carro-Pipa é a
maior já executada no país, coordenada pelo Exército. São 4.649
unidades, atendendo a 763 municípios, levando água a 3 milhões de
pessoas. Só essa operação já custou R$ 510,1 milhões ao governo. Cerca
de dez milhões de nordestinos foram afetados pela seca.
No cenário devastado, furto de cisternas piora a situação
Ao percorrer 1.200 quilômetros, foi
possível ter a dimensão dos danos causados pela seca. Os açudes,
barreiros e rios, como o Pajeú e o Riacho do Navio, estão secos. O verde
da caatinga transformou-se num amontoado de galhos cinzentos, como às
margens da BR-232, que liga Recife ao agreste. Ao lado da pista, as
carcaças de bois mortos são facilmente encontradas.
Só no quilômetro 176 da BR, na altura do
município de Belo Jardim, havia 16 carcaças, algumas recentes, cena que
se repetiu 16 quilômetros adiante, no município de Sanharó.
O governador de Pernambuco, Eduardo
Campos (PSB), prometeu que, até 2014, todas as casas da caatinga terão
uma cisterna, de concreto ou de polietileno, como as distribuídas pelo
governo federal, que diz ter entregue 250 mil unidades no semiárido.
Muitas, não foram instaladas e já houve casos de furto, como em
Floresta, disse Josélio Amaro Lisboa, coordenador do Comitê Gestor
Municipal. Ele denunciou o sumiço de duas à polícia.
Os ladrões de cisternas (cada uma
armazena 16 mil litros) não foram identificados. Elas foram furtadas às
margens da rodovia PE-360. Iriam ser instaladas em duas escolas
municipais, no vilarejo de Jericó. Ao contrário das cisternas de
concreto, instaladas pela Articulação do Semiárido (ASA), as do governo
não têm número de série, o que torna difícil seu rastreamento. Têm só o
carimbo do “Água para todos”, o slogan “País rico é país sem pobreza” e a
marca de fábrica.
Os efeitos da seca deverão ser tema da
reunião que a presidente Dilma Rousseff terá com os governadores em
Fortaleza esta semana. Até o momento, são 1904 municípios nordestinos em
estado de emergência. O Ministério da Integração Nacional informou que
já investiu R$ 5 bilhões (desde 2012) para reduzir os efeitos da
estiagem sobre a população do semiárido, por meio de benefícios como o
Bolsa Safra, o Seguro Garantia Safra, a venda de milho subsidiada e
crédito a juros baixos. O ministério negou que a indústria da seca
persista, já que os beneficiários das medidas emergenciais constam do
Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal identificados
como de baixa renda. (Letícia Lins – O Globo)
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