LÍVIA MARIA NÃO PODE PAGAR POR ISSO...
Carlos Goes
Eu trabalho como analista econômico. No meu dia a dia, minhas planilhas
estão cheias de agregados correspondentes a gastos do governo, das
famílias, investimento das empresas, importações e exportações. Nesse
universo matemático, é fácil se esquecer que os sujeitos da economia não
são números, mas pessoas.
Não somente pessoas que vivem hoje,
mas também pessoas que ainda estão por nascer. As decisões políticas
sobre a economia têm implicações sobre as gerações futuras. Mas esse
debate – o encontro entre economia política e justiça intergeracional –
passa distante da maioria dos tomadores de decisão e macro-economistas.
Para
se entender a relação entre os gastos das gerações presente e futuras, é
necessário reconhecer que o governo não cria riqueza por si só – o que
ele faz é transferir a riqueza no tempo e no espaço. O governo pode
transferir dinheiro do Marcos para a Fernanda, mas para que essa
transferência ocorra, alguém necessariamente vai ter que ter gerado essa
riqueza previamente.
Do mesmo modo, quando nós, através do
governo, gastamos mais do que arrecadamos com nossos impostos, nós
estamos transferindo renda de outras gerações para a gente. Esse gasto
adicional – o “déficit”, em economês – vai ser financiado através de um
aumento da dívida pública. E essa dívida vai ter de ser saldada no
futuro.
Imagine que você tenha feito um crediário nas Casas Bahia
para comprar um computador. Sem o crediário, você não teria como
comprar o computador. O crediário, portanto, aumenta o seu bem estar
presente. Mas você vai precisar economizar para pagar as prestações do
seu crediário, o que significa que sua renda disponível para gastos
futuros vai ser menor. Com isso, você vai estar sacrificando seu bem
estar futuro para aumentar seu bem estar presente.
O mesmo é
verdade para a dívida pública. Nós estamos aumentando nosso bem estar
presente, mas para isso vamos sacrificar o bem estar das próximas
gerações. Para lidar com a nossa dívida, os nossos filhos e netos vão
ter três opções:
- Se eles decidirem pagar a dívida, eles vão diminuir a renda que eles vão ter para financiar os outros gastos do governo, como saúde, educação, segurança ou redução de impostos.
- Outra opção é usar a inflação para “monetizar” a dívida. Como uma parte da dívida tem pagamentos fixos, se a inflação aumentar o valor real da dívida diminui – um processo conhecido como “monetização”. Mas o efeito colateral disso é que toda a população teria seu poder de compra deteriorado e uma maior parte da renda ficaria com o governo. A monetização é um tipo de imposto indireto.
- Finalmente, eles podem dar calote. O problema é que isso iria prejudicar não somente o governo, que perderia acesso ao financiamento, mas também as empresas privadas e pessoas comuns – que vão ter que pagar muito mais caro para ter acesso ao crédito, já que um calote do governo aumenta os custos de empréstimo para todas as pessoas. Muito provavelmente isso levaria a uma crise generalizada na economia.
Em todos os casos, o comentário
inicial se mantém: toda vez que nós financiamos nosso consumo com
emissão de dívida, nós estamos transferindo bem estar das gerações
futuras para a nossa geração. Tendo isso em mente, eu proponho três regras, moderadas e aplicáveis no mundo real, para que adaptemos a dívida pública ao princípio de justiça intergeracional:
- Não se deve financiar com dívida um gasto que não beneficiará as gerações futuras. É razoável que nossos filhos paguem por parte de uma ponte que os beneficiará, mas é completamente injusto fazer o que fez, por exemplo, o governo Geisel: tomar dívida para financiar consumo de petróleo, pois isso não beneficiou em nada as gerações subsequentes.
- A dívida não deve crescer a um ritmo maior que a produtividade futura. Se o crescimento econômico futuro for rápido, refletindo os investimentos que nós fizermos, os custos da dívida vão ser relativamente baixos para as gerações futuras. Caso contrário, nos estaremos condenando-as a um fardo excessivo.
- Gastos excessivos devem ser compensados, ao menos em parte, no futuro próximo. Devemos criar regras institucionais que obriguem o orçamento público a estar equilibrado no médio prazo, para evitar que os governos e gerações presentes coloquem os pesos de seus gastos somente nos governos e gerações futuras. É uma questão de incentivos: se você não arcar com a conta, muito dificilmente vai ser diligente com os gastos. Essa lógica serve tanto para a conta de luz de uma república de estudantes, como para os gastos de uma República Federativa.
Os debates do
orçamento público precisam ir além da tradicional disputa sobre os
multiplicadores fiscais – é preciso nele inserir um elemento de justiça
intergeracional. Quanto mais pouparmos e investirmos, melhor nossos
filhos e netos vão viver. Quanto mais nos endividarmos, maior será o
esforço que eles terão de fazer para subsidiar nosso bem estar. Jornal Online Araripe Informado - Fonte: JusBrasil
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